sexta-feira, 4 de abril de 2014

Voyeur


Estação de Campanhã. Segunda-feira. 9.37. Era assim que começavam todas as semanas. Saía do comboio, lentamente, entre apertos e empurrões. Uns corriam para o trabalho, outros para uns braços abertos. No sentido contrário, pais transportavam as malas das filhas. Namorados apagavam um último cigarro com um beijo. Emos balançavam em vez de andar, enquanto deprimiam ao som de música. E eu ali, a caminho de casa, com a enorme mala amarela. A vontade de chegar ao destino era pouca. Aquelas paredes brancas, tão brancas, davam-me demasiada margem à imaginação. E deixava-me estar sempre mais um pouco, vagueando contra a corrente, apreciando cada gesto, cada sinal, imaginando de onde vinham, para onde iam, o quão felizes eram. Comprava uma revista e sentava-me no café, a tomar o pequeno almoço. A crise não era tão grande nessa altura, em que não era proibitivo frequentar aquele espaço. E olhava à minha volta, durante mais uma hora. Escutava todas as conversas, disfarçando com o virar da página.
Hoje, depois de alguns meses, voltei a andar de comboio. Pela primeira vez na vida, cheguei à estação com meia hora de antecedênciae e dei-me o prazer de a voltar a desfrutar. Todas as horas que lá passei, não foram certamente por um bom motivo. Ainda assim, descobri que sinto falta daqueles momentos sozinha, em que me transpunha para tudo o que via. É que, na verdade, eu gosto de viver a minha vida vinte e três horas por dia e de reservar uma para ser voyeur.

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